O papel da identidade social nas relações intergrupais

«Apesar de ser um tema amplamente discutido pela filosofia, sociologia e antropologia, do ponto de vista da psicologia social, as relações intergrupais fazem parte de sua agenda há um tempo relativamente recente (Costa, 2009). Um dos primeiros trabalhos a analisar as relações intergrupais e sua ligação com processos de discriminação social foi desenvolvido por Kurt Lewin (1997/1941), tendo contribuído substancialmente para a formulação posterior da teoria da identidade social. Este autor discute questões teóricas sobre discriminação social por meio da observação e análise dos acontecimentos sociais e movimentos sociais da década de 30, na Europa e nos EUA, especificamente, sobre questões referentes ao antissemitismo, luta das mulheres e dos negros pelo direito ao voto (Lewin, 1997/1941). O interesse de Lewin estava nas práticas de socialização e nas dinâmicas inter e intragrupais utilizadas pelos membros de grupos desprivilegiados face o cenário de discriminação do qual eram alvo. Suas contribuições foram utilizadas por Tajfel (1979), permitindo o desenvolvimento de teorizações mais sistemáticas sobre as relações intergrupais. De modo geral, Lewin dá ênfase ao caráter social do antissemitismo, situando-o em forças externas ao grupo discriminado e independente do comportamento ou características de seus membros. Acrescenta ainda que os pensamentos negativos relativos ao grupo de pertença dão origem a estratégias de adaptação ao grupo dominante e também ao grupo dominado. No entanto, esse processo de adaptação, segundo essa perspectiva, não se traduz em uma mudança efetiva no sistema social, visto que o grupo dominado, normalmente, assimila os valores do grupo dominante, como é o caso das análises em relação ao antissemitismo. Nessa perspectiva, o grupo dominado seria uma entidade subjetivamente formulada, capaz de integrar seus membros a partir de um destino comum, o que por consequência retira dos seus membros a distintividade individual (Cabecinhas, 2002a).

Allport (1962) apresenta em sua análise sobre o preconceito, a noção de generalização das características do grupo alvo como sendo uma das bases da categorização. Neste aspecto, essa ausência de distintividade individual percebida no grupo dominado gera no grupo dominante uma autonomia que não é capaz de ser experienciada pelo grupo dominado, resultando na manutenção das relações assimétricas de poder entre os grupos. É neste sentido que Allport insere o processo de estereotipização e rotulação na discussão sobre as relações intergrupais e enfatiza que a categoria, ou seja, o rótulo linguístico e o estereótipo fazem parte de um processo mental complexo, em que um estereótipo não pode ser idêntico a uma categoria, mas pode ser compreendido como uma ideia fixa que acompanha a categoria. O estereótipo atua, por sua vez, como um recurso justificatório para a aceitação ou rejeição categórica de um grupo e como recurso seletivo que assegura a manutenção da simplicidade no julgamento (Allport, 1962).

Em termos de uma reflexão sobre as contribuições seminais de Lewin e de Allport, podemos indicar que, se por um lado o primeiro autor enfatizava o caráter social das relações intergrupais entre grupos dominados e grupos dominantes, por outro lado, Allport focalizava sua análise do preconceito com base, principalmente em aspectos cognitivos, como falha cognitiva, processo de categorização, embora tenha salientado a natureza multifocal deste fenômeno. Deste modo, é possível supor a existência de uma articulação entre fenômenos de ordem intrapsíquica e social na base da construção das configurações derivadas das relações sociais. E são essas configurações que guiam o comportamento social.

Outro teórico que também contribuiu para o estudo das relações intergrupais foi Sherif (1961). Seus estudos realizados entre as décadas de 1950 e 1960 foram promissores em introduzir na psicologia social os primeiros passos para o entendimento dos conflitos intergrupais (Gaertner & Dovidio, 2000).

Em um estudo denominado “Robbers Cave”, Sherif (1961) analisou as interações naturais de dois grupos de meninos em um acampamento de verão. Por uma semana, os grupos conviviam separadamente a fim de fortalecer as normas intragrupais. Na semana seguinte, os grupos eram colocados em situação de competição por meio de atividades esportivas. Por fim, na terceira semana, os grupos mantinham contato em situação neutra. Os resultados demonstraram dados interessantes sobre a formação de normas e a emergência de uma hierarquia dentro dos grupos. Na situação de competição, houve o surgimento de estereótipos e de hostilidade entre os grupos. Na situação neutra, embora não competindo entre si, a hostilidade entre os grupos não foi reduzida. Apenas após a intervenção dos pesquisadores, introduzindo metas que não poderiam ser atingidas sem a cooperação de ambos os grupos, as relações intergrupais vieram a se tornar mais harmoniosas (Gaertner & Dovidio, 2000).

O modelo de Sherif (1961) estipulava que os comportamentos hostis entre os grupos, bem como, as representações que favorecem o endogrupo em relação ao exogrupo, resultam da situação de conflito e não das características ou estruturas internas do grupo e seus membros. As evidências indicam que tais comportamentos são resultantes da identificação dos membros com seu grupo, o que coloca a identidade social no centro das relações intergrupais (Neto & Amâncio, 1997).

Levine e Campbell (1972), pioneiros a contribuírem com o estudo sobre conflito intergrupal, definiram essas considerações advindas dos estudos de Sherif como um conflito realista (propondo posteriormente o modelo do conflito realista), tendo em vista que os conflitos intergrupo foram gerados por condições de conflito reais, por isso, a denominação de conflito de interesses grupais. No entanto, para Tajfel e Turner (1979), os dados obtidos nas investigações de Sherif, apesar de levantarem importantes constatações sobre o comportamento intergrupal, deixam a desejar no sentido em que negligenciam a identificação dos participantes com seu grupo de pertença como determinante central na análise do comportamento intergrupal. A identificação com o próprio grupo foi tomada neste modelo como um fenômeno derivado apenas dos conflitos gerados no grupo.

Para Sherif (1961), a competição entre os grupos pode aumentar a coesão dos membros e a cooperação dentro do grupo, isto é, os conflitos intergrupais não apenas geram sentimentos antagônicos em relação ao exogrupo, mas podem proporcionalmente desenvolver dentro do próprio grupo sentimentos favoráveis que ampliam a satisfação com a pertença grupal (Cikara, Botvinick, & Fiske, 2011). Contudo, a identidade social não é aludida como um fenômeno autônomo, mas secundário, ponto que para Tajfel e Turner (1979) é crucial no entendimento das relações intergrupais. Para esses autores, o desenvolvimento das identificações com o grupo de pertença é entendido na teoria do conflito realista basicamente como um epifenômeno do conflito intergrupal. Para a teoria do conflito realista, essas identificações aparecem ligadas a alguns padrões das relações intergrupais, mas não é apresentado um suporte em termos do processo que está por trás do desenvolvimento e manutenção da identidade grupal nem sobre o possível papel autônomo sobre os aspectos subjetivos do comportamento endogrupal e intergrupal dos membros do grupo (Tajfel & Turner, 1979).

Desta forma, Tajfel e Turner (1979) defendem uma orientação teórica que possa ampliar esses achados, colocando a identidade social no centro do processo inerente às relações intergrupais e conflitos intergrupais. Inicia-se, então, uma longa jornada de investigações que se tornaram um marco no estudo do preconceito e discriminação através dos pressupostos da teoria da identidade social (Jenkins, 2014).»

Sheyla Christine Santos Fernandes; Marcos Emanoel Pereira. Endogrupo versus Exogrupo: o papel da identidade social nas relações intergrupais

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