Linguagem e (des)humanização

“Não somos nós que fazemos a pergunta pelo sentido da vida, mas a própria vida nos faz, quando exatamente as coisas já não fazem sentido e o coração humano continua pulsado por ter algo pelo qual viver. Mas também quando exatamente quando a vida nos inspira a encontrá-lo, de muitas formas, e sem forma definida alguma, pois é mistério e está além de toda forma. Como enigma, esconde algo de grandioso que pede sua decifração, e eis que nasce a linguagem, como cifras a serem não somente lidas, mas executadas onde as formas da beleza vão sendo assimiladas no interior humano que transbordam como fonte de sentido em seu agir, e eis o poeta, o que cifra o mundo, que nele se inspira, para outros também experimentarem. A linguagem é exatamente a decifração do mundo, e de modo especial a linguagem poética, que nasce da escuta atenta à essa vida maravilhosa e horrenda ao mesmo tempo, mas que algo faz o poeta acreditar que pode fazer sentido a vida, quer seja quando nos provoca ao encanto, quer seja quando não permite que nos percamos em delírios de nossas ilusões. É pelo surgimento da linguagem que o ser humano se humaniza e constrói uma sociedade em que suas formas sociais correspondam as formas daquilo que forma a sua consciência.

A Teologia tenderá a dizer que este “algo” que dá sentido à vida é “Alguém”. A Literatura ora concorda, quando este “Alguém” também provoca esse “algo”, mas com todo direito, desconfia de um “Alguém” que tão pouco tem “algo” a dizer à tarefa humana de ser humana, e mais ainda, quando em nome deste “Alguém” legitima as cegueiras que desumanizam a vida. Aqui a poesia é teológica quando é atéia, porque diz Deus no avesso. Quando o discurso sobre Deus não enxerga suas cegueiras é porque deixou de ser inspirado, ou seja, deixou de ser provocado por algo/Alguém que lhe provocava uma paixão pela vida, e assim, se torna apático com a vida concreta das pessoas e da sociedade para inventar um mundo paralelo, no qual se refugia e sacrilegamente chamará “céu”, como distância da condição humana. O santo que Zaratustra encontra não mais ama os homens para amar a Deus:

Pois por que — disse o santo — vim eu para a solidão? Não foi por amar demasiadamente os homens? Agora amo a Deus; não amo os homens. O homem é para mim, coisa sobremaneira incompleta. O amor pelo homem matar-me-ia.

É a partir desse momento que “Deus morreu”! Morre não porque já não tem mais nada a dizer a vida, mas sim porque já não o escutam, e o tratam como morto. Colocam em “Suas” palavras a legitimação da apatia de seus corações. Esse “deus” não era mistério, era um fantasma que assombrava pelo medo, e sua linguagem apática era teológica.

É aqui que a visão literária de Deus não é menos importante que a visão teológica, pois aquela por ser uma linguagem que nasce da escuta nunca deixou de escutar o Mistério da vida, esta por sua vez, acabou por sofrer de esclerocardia e surdez afetiva, dada sua paixão, demasiada paixão, pela razão cartesiana, que por sua vez temia a paixão, por fazer perder a razão. Nas palavras de Voltaire, o bom teólogo é aquele que tem um “coração gelado” e por isso o conselho:

Acaso era necessário odiar-se, perseguir-se, degolar-se por essas quimeras incompreensíveis? Corram com os teólogos, e o universo ficará tranqüilo (pelo menos em matéria de religião). Admitam-nos, dêem-lhes autoridade, e a terra será inundada de sangue.

Para o filósofo francês, a espada do frio teólogo se chama “dogma” e é causa de todas as barbáries, de modo que para conhecer a Deus não basta “uma razão para o conhecer” mas fundamentalmente ter “um coração para o amar”. Mais propriamente falando, Voltaire criticava o “dogmatismo” de uma linguagem cristã de Cristandade, ou seja, criticava o modo de ser apático de um cristianismo cultural que era usado para legitimar as escusas escolhas políticas de seu tempo, e que as Letras oriundas de uma consciência marcadamente humana, não aceitariam uma linguagem (modo) de ser desumano, por mais sagrada que pudesse ser a linguagem. O dia em que a linguagem teológica desumaniza é sinal que já não é Deus quem fala, mas alguém que se aproveita de Sua fama.”

Alex Villas Boas. Se poeticamente o humano habita o mundo, poeticamente Deus habita o humano.

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