A gênese da alteridade

«Em primeiro lugar, relembrarmos que o texto bíblico começa pela criação, criação do universo e criação do ser humano, e não pela história de Caim e Abel; Isto para tornar distância em relação aos ensaios sobre a violência de Girard, por exemplo. O que significa a criação do ser humano à imagem de Deus? Um dos aspectos da imagem de Deus expõe a diferença entre o homem e a mulher como estrutura mesma dessa imagem. A semelhança divina consiste na relação mesma do homem com a mulher. Esta relação “constitui ao mesmo tempo a humanidade do homem e a imagem de Deus”. Essa concepção mostra que não há imagem de Deus que não seja habitada pela alteridade. Num certo sentido, o primeiro dom de Deus é a própria alteridade. Um está inscrito na essência própria do ser humano, no coração de sua liberdade – a essência não é nem o masculino nem o feminino, mas sua relação. O outro está na essência, mas ele pode ser recusado no movimento da história, no movimento da própria liberdade. Uma das características da violência emerge por meio da negação do outro. Essa imagem é uma exigência que deve ser assumida pela liberdade. Não existe, com efeito, forma a priori, ou modelo acabado, para realizar essa imagem. A imagem exprime bem mais a condição de um projeto futuro: assumir o outro na sua irredutível diferença. E já que não existem modelos prontos a serem aplicados, a moral é convidada a ser criadora, imaginativa, de uma vida e de um agir onde a alteridade é respeitada.

Referida à alteridade, a imagem é também referida um futuro, a uma ordem escatológica. Se o sentido da imagem (de Deus) está presente em nós, a imagem em si mesma não se torna nunca nossa possessão. O ser masculino e feminino só existe enquanto tal na comunicação. A comunicação, o diálogo, a palavra, são uma vitória sobre o retorno ao fechamento em si mesmo em sua essência mais própria, característica da violência. Uma vitória, porém, sem finalização histórica, já que referida a uma ordem escatológica.

Além disso, criado à imagem de Deus, o homem não pode ver o modelo do qual ele é a imagem. Não sendo criado à imagem do mundo, mas de Deus, o homem é criado à imagem do invisível. Essa imagem ausente não pode ser o objeto de nenhuma contemplação narcísica ou fechada em si mesma. Ela só pode ser um convite para reencontrar seu modelo invisível. Como exercício e expressão da liberdade do homem, afirmando-se de alguma forma, a existência humana deve ser trabalhada por essa abertura, sob pena de destruir a si mesma e aos outros.

O ser humano tem, portanto, por vocação profunda, realizar em si mesmo a imagem de Deus, que não é outra coisa que o exercício da liberdade. Enquanto ser livre, o homem é imagem de Deus e capax dei. Nesse sentido, uma teologia da criação permite pensar que a liberdade finita é entregue a si mesma e entregue à sua própria responsabilidade. Essa reflexão teológica conduz a reconhecer que, em nome da revelação, o homem tem a capacidade de dar sentido à vida, de decidir sobre tudo, de maneira responsável, em razão de sua qualidade de filho de Deus, quer dizer, como ser racional e livre. Como providentia sui e sibi ipsi, o ser humano é auto-legislador. Ele não faz diretamente apelo a Deus para formular as normas de sua conduta, mas essa mesma liberdade deverá, no ato mesmo pelo qual ela toma consciência de si, exprimir o seu caráter de dom e sua passividade fundadora. Se ela omite esse traço, se ela quer se determinar e realizar-se segundo o modo da superpotência não admitindo nenhuma fronteira, nenhum limite, ela fenece na idolatria criminosa Ela faria ver, ao mesmo tempo, que ela é a imagem que tem de Deus: um Deus onipotente e sem limites que não é aquele da Aliança

Queremos dizer que o humano plenifica nele a imagem de Deus na medida em que, dominando seu próprio domínio, a exemplo de Deus, parando no seu ato de criar (e colocando aí um limite ao seu próprio domínio), “ele contribui à criação de um mundo pacífico, com esta doçura que é a renúncia às ilusões da superpotência e abertura dinâmica à alteridade. O humano se torna então um ser vivente que suscita a vida e se torna capaz da Aliança, à imagem de Deus”. Ora, é precisamente essa noção de aliança, que implica o respeito da alteridade, que a serpente vem colocar em dúvida.»

Pe. Dr. Eric Gaziaux. A violência: percurso de ética fundamental.

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