Mística de olhos abertos

«Dorothy Day nasceu em 1897, em Nova York, passando a maior parte da infância em Chicago. Em 1916, retorna com a família para Nova York e começa a trabalhar no jornal socialista The Call. Trabalha também para a revista The Masses, opondo-se ao envolvimento dos EUA na Primeira Guerra Mundial. Em 1917, é presa ao protestar em frente à Casa Branca pelo direito do voto das mulheres e faz greve de fome, experiência que a marcou profundamente e que terá posteriormente influência em sua conversão.

Eu perdi todo o sentimento da minha própria identidade. Eu refleti na desolação da pobreza, miséria, doença e do pecado. Que eu estaria livre depois de trinta dias não significava nada para mim. Eu nunca seria livre novamente, nunca livre quando eu soube que atrás das barras de todo o mundo havia homens e mulheres, jovens meninas e meninos, sofrendo restrição, punição, solidão e sofrimento por crimes dos quais todos nós éramos culpados.

Na prisão começa a ler a Bíblia e as palavras divinas ecoam em seu coração, tanto que tenta se convencer de que a leitura era por mera diversão literária. Dorothy foi uma mulher de seu tempo, tempo de rebelião de costumes provocada, entre outras coisas, pelo avanço do movimento feminista que deu à mulher maiorcondição de envolvimento político e proporciona nova maneira de encarar a sexualidade.

Leva uma vida agitada e boêmia, tem um caso com Lionel Moise que resulta em uma gravidez e por pressão do parceiro, vê-se forçada a praticar o aborto. Casa-se posteriormente com Barkeley Tobey, produtor literário, mas acaba deixando-o e retomando o romance, por alguns meses, com Lionel Moise.

Vive tempos de estabilidade afetiva e emocional com Forster Batterham, botânico. Com ele tem uma filha, Tamar Theresa, em 1927, cujo nascimento marca o início de sua conversão, conforme lemos em sua autobiografia: “minha alegria de ter dado à luz a uma criança que me fez fazer algo definitivo. Eu queria que Tamar pudesse ter um caminho de vida e instrução”. O batismo da menina foioportunidade de pensar sobre sua própria experiência de fé:

Eu sabia que batizaria minha filha a todo custo. Eu sabia que não a deixaria debatendo muitos anos como eu fizera, duvidando e hesitando, indisciplinada e amoral. Eu senti que era a maior coisaque faria por minha filha. Para mim, eu rezei pelo presente da fé. Eu tinha certeza, ainda sem garantia. Eu adiei o dia da decisão.

Por conta das amigas Bee e Blanche, católicas devotas, Day começa a questionar sobre a fé e sobre a Igreja Católica. Relembrando alguns fatos do passado, diz: “o primeiro rosário que tive me foi dado por uma amiga de minha vida desordenada, que, mais tarde, se tornou comunista e foi ativa no trabalho para Espanha Legalista”. Ainda continua afirmando que “foi por eu sempre ir à catedral que Mary me deu o rosário. Eu não ia à missa porque era cedo e eu tinha que trabalhar”. Nota-se que durante sua vida, mesmo afastada, nunca perdeu a referência à Igreja com a qual tinha uma relação tradicional.

Ainda antes do batismo da filha, relata: “Tamar seria batizada e eu sabia que o rasgo que isso causaria nas relações humanas ao meu redor”. Mesmo sem a aprovação do companheiro, a menina é batizada. Essa decisão levou ao fim a relação com Batterham. Contudo, o batismo de Dorothy é posterior.

No momento de decisão, Dorothy sabia que “tornar-se católica significaria encarar a vida sozinha”, mas segue adiante. Tanto que seu relacionamento com Forster acaba e, assim, passa a ser mãe solteira. Isso não lhe é um peso, pois nota sua coerência de vida e de testemunho: “eu queria ser pobre, casta e obediente. Eu queria morrer para viver, para deixar o homem velho e vestir Cristo”.

Day nunca deixou enfraquecer seu compromisso pela justiça social e o viver entre os mais pobres. Ela acreditava numa “Igreja dos pobres” e ela mesma relata: “uma comunidade estava crescendo. Uma comunidade dos pobres, que apreciavam estar juntos, que sentiam que tinham embarcado em uma grande empreitada, que tinham uma missão”.

Após uma manifestação em Washington, Dorothy compreende que não havia conhecido nenhum leigo católico pessoalmente. Quando retorna para Nova York, encontra o Pe. Peter Maurin. Sobre esse encontro escreve: “Peter, o camponês francês, cujo espírito e ideias dominarão o resto deste livro, assim como eles dominarão o resto da minha vida”. Era o Pe. Peter quem falava sobre pobreza e sociedade para Dorothy e para os pobres. Será ele seu companheiro e parceiro de vida espiritual, além do trabalho apostólico. Em 1933, iniciam o Catholic Worker Movement (CWM), movimento que além da publicação de um jornal influente (com o custo de um centavo), fundou casas para os desabrigados da Grande Depressão e, aos poucos, foi se adaptando às novas exigências da sociedade.

O CWM desejava viver um compromisso cristão radical a fim de criar uma nova sociedade “dentro da casca velha”. Os propósitos do CWM são: uma crítica da distribuição injusta da riqueza; uma crítica da organização política do governo; uma crítica das imagens distorcidas da pessoa humana causadas por classes, raça e sexo; uma forte condenação da corrida armamentista. Os meios para chegar a esses fins são: uma concepção personalista do ser humano; uma sociedade descentralizada; não violência; obras de misericórdia; e pobreza voluntária.

Dorothy Day era uma revolucionária que buscou a revolução do coração combinada com a ação em defesa do ser humano, sempre em obediência e devoção à Igreja, que não era cega e nem acrítica. Vai à Roma com um grupo de mulheres durante o Concílio Vaticano II e pede aos padres conciliares que condenem a guerra.

É presa aos 75 anos por se declarar pacifista e morre em 29 de novembro de 1980, no meio dos pobres, em Nova York. Está em processo de canonização e já foi declarada Serva de Deus, por São João Paulo II,em 2000. Por seu itinerário espiritual, Dorothy Day pode ser considerada uma “mística de olhos abertos” e precursora da espiritualidade laical no espírito do Concílio Vaticano II. Sua vida é testemunho de uma espiritualidade de compaixão e solidariedade, comprometida com a transformação da sociedade.

Dorothy era uma pessoa que tinha consciência de seu corpo, valorizava sua sexualidade. Gostava de carinho, de estar com as pessoas, de ser amada e de amar. É justamente sua sensibilidade feminina, conforme afirma Bingemer, que a faz “apóstola dos mais pobres e defensora dos sem voz, paladina da paz e da justiça”. Sua difícil experiência com a maternidade teve grande importância em sua vida e marcou também seu engajamento social. A gravidez e o nascimento da filha representaram uma grande graça depois do aborto, pois imaginava que não poderia mais engravidar. É profundo e tocante o relato sobre essa passagem de sua vida.»

Ceci Maria Costa Baptista Mariani e Henrique Matheus Biondo Costa. Dorothy Day, “mística de olhos abertos”