As migalhas sob a mesa

“Sim, Senhor; mas também os cachorrinhos comem, debaixo da mesa, as migalhas dos filhos.”

“O relato sobre a mulher siro-fenícia, como texto de memória coletiva constitutiva de identidade, apresenta uma autocompreensão da comunidade narrativa, dá voz a essa comunidade e convida os leitores a considerarem esses aspectos no labor interpretativo. A perícope reflete os esforços da comunidade para tra-çar sua identidade a partir das memórias daquele grupo de Jesus. Partindo do pressuposto de que o texto dá voz a uma comunidade que se compreende como portadora de memórias a respeito de Jesus, tornou-se necessário examinar não apenas a imagem de Jesus, mas também a imagem de si mesmo, que esse texto de memória apresenta.

Como a perícope está inserida em estruturas patriarcais de organização da sociedade, relegando a mulher à condição de marginalizada e oprimida, não seria estranho que o texto de Marcos assumisse os mesmos moldes de seu contexto histórico. No entanto, o evangelista é um porta-voz de uma comunidade de pessoas marginalizadas. E, por meio de uma hermenêutica adequada podemos concluir que há um caráter altamente subversivo nesse evangelho. Esse caráter subversivo começa a ser notado quanto o evangelista apresenta Jesus, como um profeta semelhante a Elias ou a Eliseu. Esses profetas realizaram suas atividades taumatúrgicas para além das fronteiras de Israel, em favor de mulheres estrangeiras. Ao associar Jesus com a figura desses profetas, o evangelista fundamenta a missão de evangelizar as nações como parte do ministério de Jesus e a participação ativa das mulheres nas primeiras comunidades. Ambos os aspectos não estavam previstos entre os discípulos de Jesus naquela época.

A questão em foco nessa passagem bíblica é o princípio da declaração sobre o puro e impuro, primeiramente a respeito dos alimentos e, em seguida, a respeito das pessoas. Pois, naquela época, o limite que dividia os alimentos em puros e impuros era o mesmo que dividia as pessoas em puras e impuras. Nesta última categoria estavam incluídos, principalmente, quem não pertencia ao povo de Israel e, na maioria dos casos, todas as mulheres por causa da menstruação e do sangramento após o parto. A mulher estrangeira era considerada duplamente impura, este era o caso da mulher siro-fenícia.

Primeiramente, o texto destaca que Jesus propositalmente entrou em territó-rio não apenas estrangeiro, mas também potencialmente hostil. Nesse caso, Jesus e seus discípulos fazem a experiência, não apenas de serem estrangeiros, mas de estarem à mercê dos nativos da região. Mas ao contrário da hostilidade esperada, apareceu-lhes uma mulher que pediu a Jesus uma ajuda para sua filha. E o que é mais impactante ainda, a resposta de Jesus à mulher foi excepcionalmente dura, nenhum outro suplicante nos evangelhos foi tratado da mesma forma.

Contudo, uma análise mais acurada do texto, mostra que a atitude de Jesus para com a mulher siro-fenícia é bastante paradigmática. A comunidade de Marcos apresenta a mulher siro-fenícia como o protótipo dos gentios que farão uma adesão ao evangelho, e a atitude de Jesus é uma representação da dificulda-de dos judeu-cristãos de aceitarem o ingresso de gentios na comunidade, no final do primeiro século. No diálogo entre Jesus e a siro-fenícia, a resposta da mulher é o único lugar onde Jesus é “superado” numa réplica. Ao ser vencido pela pa-lavra da mulher, Jesus corrige as posturas excludentes presentes na comunidade cristã posterior à sua ressurreição.”

Aila Luzia Pinheiro de Andrade e Fernanda Lemos. Jesus e a mulher siro-fenícia (Mc 7,24-30): ecos de uma memória coletiva. Imagem: freddie marriage on Unsplash